Para a CGTP-IN a discussão sobre o futuro do trabalho não pode negligenciar a situação em que se desenvolvem, no presente, as relações laborais. Ao contrário do que seria de esperar, este Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho (LVFT) não parte da análise da situação actual para perspectivar as alterações do futuro.

As causas da elevada precariedade, dos baixos salários, da crescente desregulação dos horários de trabalho, do desrespeito por alguns dos mais elementares direitos dos trabalhadores ou do enfraquecimento da contratação colectiva não são o foco da abordagem do LVFT. A profunda desigualdade na repartição da riqueza e do rendimento entre o trabalho e o capital estão igualmente ausentes das preocupações do Livro Verde. Esta lacuna não é admissivel e limita qualquer possível discussão sobre o futuro do trabalho

Independentemente dos motivos que levaram a que o conteúdo do Livro Verde seja aquele que agora se conhece, a CGTP-IN não pode deixar de salientar a visão parcial que está contida no documento, bem como a introdução de um conjunto de formulações que indiciam um posicionamento estranho ao nosso ordenamento jurídico, desde logo pelo esbatimento da diferente posição que trabalhadores e empregadores ocupam na relação laboral.

Não só pelo que contém, mas sobretudo por aquilo que não contempla, o Livro Verde fica aquém da necessária e rigorosa análise à situação laboral no nosso país, da premente avaliação das sucessivas e negativas revisões da legislação laboral e seus impactos, dos constragimentos que levam ao cerceamento da contratação colectiva, dos mecanismos que geram as desigualdades, dos factores que condicionam a formação profisssional e a elevação das qualificações ou, entre outros aspectos, dos fenómenos que estão na base do adiamento da maternidade e paternidade que muitos jovens desejam, mas que as suas condições laborais não possibilitam.

Sem compreender e actuar sobre o presente, torna-se dificil e ineficaz perspectivar o futuro. O futuro do trabalho não resultará de um acto isolado, pré-programado, mas antes de um processo que parte das condições do presente e dos multifacetados elementos que o conformam. Neste sentido, o futuro do trabalho começa a construir-se hoje e nunca pode ser um regresso à desprotecção e degradação das condições de trabalho que marcaram o final do século XIX e a primeira metade do século XX, ainda que agora estejam presentes poderosos avanços na ciência, tecnologia e técnicas.

Para a CGTP-IN, estes avanços têm de ter implicações na elevação das condições de trabalho e de vida, na melhor qualidade do emprego, na redução do tempo de trabalho e no aumento das retribuições dos trabalhadores, aspectos que estão ausentes do Livro Verde.

livro verdeNa verdade, este Livro Verde tem como ponto central a ideia de que os desenvolvimentos tecnológicos e a digitalização crescente da economia e da sociedade, bem como as transformações necessárias à prevenção e mitigação dos efeitos das alterações climáticas, acarretam mudanças profundas no paradigma das relações laborais, implicando a necessidade não só de regular novas formas de trabalho que estariam a surgir, como de alterar em diversos aspectos a atual regulação.

As propostas implícitas nas constatações do Livro Verde assentam essencialmente na premissa de que o futuro do trabalho e da regulação das relações laborais assentam na flexibilização: flexibilização dos vinculos laborais, nomeadamente através da diluição da distinção entre trabalho subordinado e trabalho independente, reduzindo direitos e condições de trabalho para todos; flexibilidade dos modos de exercício do trabalho, com o teletrabalho e outras formas de trabalho à distância a assumirem grande protagonismo designadamente como meios privilegiados de promover a conciliação entre trabalho e vida pessoal e familiar, salientando-se neste aspeto a ênfase na apresentação destes problemas da conciliação como praticamente exclusivos das mulheres; e flexibilização do tempo de trabalho, reconhecendo-se a crescente indistinção entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho, mas remetendo-se a discussão somente para o campo de um suposto direito à desconexão, como se este direito não estivesse já implícita e explicitamente consagrado no direito à limitação da jornada de trabalho e no direito ao descanso e aos lazeres. Questões como a crescente exigência de trabalho por turnos e trabalho contínuo em sectores que não o exigem, a imposição unilateral de bancos de horas, ou a caducidade das convenções colectivas, são pura e simplesmente ignoradas.

Por outro lado, o Livro Verde ocupa-se da regulação das chamadas novas formas de trabalho, com destaque para o trabalho realizado a partir das plataformas digitais. O documento opõe “novas formas de trabalho” a “sistemas tradicionais”, sugerindo que “novas” corresponde essencialmente a progresso e “tradicionais” a uma visão conservadora – ideia que a CGTP-IN firmemente rejeita. O fundo da questão reside antes no trabalho com direitos.

O fenómeno que designamos genericamente como trabalho nas plataformas digitais assume múltiplas e diversificadas formas, todas elas caracterizadas pela extrema desregulação e consequente precariedade e instabilidade, decorrentes da completa desprotecção laboral e social do trabalhador. Aliás, na maioria destas situações nem se reconhece que se trata de trabalhadores, sendo classificados como empreendedores ou prestadores de serviços, precisamente a fim de afastar a existência ou reconhecimento de qualquer relação laboral juridicamente relevante entre a empresa que gere a plataforma e o trabalhador que presta o serviço com a sua intermediação.

Este tipo de trabalho, que no fundo ressuscita práticas de exploração laboral do século XIX, embora mediadas pelo recurso a modernas tecnologias digitais, necessita urgentemente de ser regulado, enquadrado na legislação laboral vigente, acabando com o espaço de desregulação que constitui, hoje em dia, a actividade empresarial digital.

Porém dificilmente se pode considerar que estamos perante uma nova forma de trabalho ou um novo tipo de relação laboral. Se nos abstraírmos da aura de modernidade e sofisticação emprestada pela utilização de meios tecnológicos e nos concentrarmos nas características essenciais da relação subjacente entre as partes, facilmente constataremos que estamos perante a “clássica” relação de trabalho subordinado, com a exploração da parte mais fraca – o trabalhador – a assumir expressão máxima. Ou seja, não será necessário inventar nada, mas simplesmente integrar estas relações laborais no quadro laboral vigente, obrigando as grandes empresas que detêm as plataformas a cumprir as leis do pais em que actuam e obtêm lucros milionários.

Finalmente, a par da diluição entre trabalho subordinado e trabalho independente, pretende afirmar-se o papel da segurança social no preenchimento de lacunas de protecção decorrentes da desresponsabilização das entidades patronais, preconizando que sejam o Estado e os contribuintes a assumir as responsabilidades que caberiam directamente às grandes empresas tecnológicas.

Embora defendendo que todos os trabalhadores, independentemente do seu vínculo ou relação laboral, têm direito a protecção social, discordamos em absoluto de soluções em que o alargamento desta protecção serve apenas para encobrir ou legalizar a utilização abusiva de trabalho precário e falso trabalho independente.

O LVFT admite o recurso a impostos para financiar a segurança social, o que surge relacionado com o acréscimo de custos resultante do alargamento da cobertura para abranger as novas formas de trabalho e o reforço da segurança social destes trabalhadores. A CGTP-IN sempre defendeu que os regimes contributivos se devem autofinanciar. É verdade que existem impostos no âmbito da diversificação das fontes de financiamento, mas têm função diferente, porque são dirigidos ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Para a CGTP-IN o caminho correcto é aprofundar a diversificação com a criação de uma contribuição complementar das empresas com incidência no valor acrescentado líquido, a qual acresce à TSU, sem a substituir.

Aponta-se ainda a criação de incentivos para a formalização de trabalhadores não declarados ou subdeclarados. Não se compreende esta medida quando o problema reside na aplicação de legislação em vigor.

A CGTP-IN não aceita que se promova a precarização dos vínculos laborais como consequência inevitável da inovação e progresso tecnológicos e se remeta a responsabilidade por eventuais problemas sociais resultantes desta precarização intencional das relações laborais para os sistemas de protecção social, cujo alargamento deverá ser financiado pelos próprios trabalhadores e/ou pela comunidade geral através dos seus impostos, com absoluta exclusão das empresas, que são afinal as principais promotoras e beneficiárias desta precarização.

No fundo, o tom de inevitabilidade assumido no LVFT vem no sentido de que a digitalização é tão necessária – o que não se nega – como fantástica e que a sociedade como um todo e os trabalhadores, em particular, devem esforçar-se por criar as condições para desenvolver, tão rápidamente quanto desejável, todas as oportunidades digitais ali identificadas. A este esforço que, para os trabalhadores, representa mais precariedade e instabilidade, não será alheia a intenção governamental de tornar o país numa espécie de “paraíso digital” para as grandes tecnológicas multinacionais.

O Livro Verde tem, ainda, implícita a ideia de criação de uma terceira categoria de trabalhadores, entre o trabalhador assalariado e o trabalhador independente. Esta ideia está presente quando, nomeadamente, se refere ou defende: a criação de um “corpo mínimo” de direitos aplicáveis aos trabalhadores das plataformas digitais; a criação de um sistema contributivo e fiscal adaptado aos trabalhadores das plataformas digitais; a existência de uma “zona cinzenta” entre trabalho dependente e trabalho independente; a promoção da participação e representação dos trabalhadores das formas de emprego ditas atípicas.

Em suma, o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho agora apresentado não traz essencialmente nada de verdadeiramente novo no que respeita à evolução da regulamentação do trabalho.

Muito pelo contrário, podemos afirmar que se filia na mesma orientação e prossegue a mesma linha de desregulação e flexibilização das relações laborais e de desvalorização do direito do trabalho que tem caracterizado a política laboral desde a década de 80 do século passado, passando pela aprovação do Código do Trabalho de 2003 e pelas sucessivas revisões operadas em 2009, 2013-2014 e 2019.

Finalmente, a CGTP-IN salienta que, em seu entender, as questões relacionadas com o trabalho e os trabalhadores da Administração Pública não deveriam constar deste Livro Verde e muito menos ser objecto de apreciação e discussão em sede de concertação social, uma vez que se trata de matéria alheia à competência destes órgãos. De facto, a lei prevê mecanismos e instrumentos próprios de discussão das condições de trabalho na Administração Pública entre o Governo (enquanto entidade patronal) e as organizações representativas destes trabalhadores que devem ser devidamente observados.

Neste quadro, a CGTP-IN repudia qualquer tentativa de discutir este assunto noutra sede, desvalorizando as organizações representativas dos trabalhadores da Administração Pública.

Assim, a CGTP-IN tem uma discordância profunda relativamente à visão do futuro do trabalho perspectivada no LVFT.

No entender da CGTP-IN, o futuro do trabalho só pode ser construído rompendo com as medidas e opções que estão na base da actual situação no que respeita ao trabalho e às condições de trabalho.

Assim, em primeiro lugar, urge resolver os problemas do presente do trabalho, nomeadamente rever um conjunto de matérias na legislação laboral, a fim de repor os direitos dos trabalhadores que foram sendo perdidos ao longo das sucessivas revisões da legislação do trabalho.

A este respeito importa referir que, apontando o LVFT que um dos caminhos para a regulação dos impactos laborais decorrentes do teletrabalho e da digitalização, consiste na promoção da negociação colectiva, tal não será possível sem a eliminação dos mecanismos que a bloqueiam. Como já agora, também não será possível resolver muitos dos outros problemas que condicionam e limitam a negociação colectiva aos vários níveis e nos vários sectores.

Por outro lado, no que respeita ao combate à precariedade, este aspecto só é abordado no contexto das novas formas de trabalho ou, de forma mais ligeira, em relação aos trabalhadores migrantes, ignorando-se a persistência de múltiplas formas de vínculos precários, nomeadamente entre os trabalhadores mais jovens. Para a CGTP-IN, a introdução de medidas como a restrição dos regimes da contratação a termo e do trabalho temporário, a revogação da norma inconstitucional que alarga desproporcionadamente a duração do período experimental para os jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração e a imposição do princípio de que a um posto de trabalho permanente deve corresponder sempre um contrato de trabalho efectivo, ou seja um vínculo por tempo indeterminado, são alterações imprescindíveis, sem as quais um número crescente de trabalhadores continuará condenado a uma vida de permanente instabilidade.

Por outro lado, a eventual regulação de algumas novas realidades que foram surgindo no mundo do trabalho não deve contribuir para uma ainda maior precarização das relações laborais, impondo a sua desregulação e promovendo a desvalorização do trabalho e dos trabalhadores.

O futuro do trabalho reside na valorização do trabalho e dos trabalhadores e os avanços na ciência, nas tecnologias e nas técnicas de produção, em si fruto do trabalho, devem ser postos ao serviço do desenvolvimento soberano do país, da melhoria das condições de trabalho e na elevação das condições de vida.

DIF/CGTP-IN

Lisboa, 13.05.2021